Luto: precisamos falar sobre ele
O luto é o amor que fica. A experiência mais difícil mas também mais transcendente que o ser humano é capaz de viver. Mas como continuar vivendo sentindo tudo o que tem pra ser sentido durante esse trabalho do luto? Será que existe algum momento em que o luto deixa de ser saudável e se transforma em luto patológico? Existe algum momento em que o luto pode se transformar em doença?
Precisamos falar mais sobre isso. Vem ler mais aqui.
Vejo o luto como um tema muito pouco discutido diante da gravidade e importância do assunto. Pouco se fala no meio acadêmico, mas também no dia a dia das pessoas ao meu redor. Muitas vezes, pode ser considerado um tabu. É difícil para as pessoas falarem sobre coisas difíceis, principalmente sobre a morte. Evitamos o assunto, ele é desconfortável. Mas, precisamos falar sobre morte e luto. Afinal, todos nós já passamos ou algum dia passaremos pela perda de alguém que amamos. Por mais que esse seja o maior medo de todos, ninguém vai passar ileso. O luto é inerente à vida de todos os seres humanos.
Para a medicina, o luto pode ser um tema conflitante quando tentamos distinguir qual a diferença entre o luto normal e o luto patológico. Afinal, a partir de qual momento, ou de quanto tempo, ou de quanto sofrimento, o luto se tornaria doença mental?
O DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), já mudou de opinião algumas vezes sobre o assunto. Em sua terceira edição (DSM III), classificou o luto como um tipo de EDM (Episódio Depressivo Maior), permitindo assim que, dependendo de como o paciente se comportasse diante da perda, e principalmente, de quanto tempo levavam os sintomas, o processo de luto poderia ser considerado como doença, e consequentemente, medicado. Caso os sintomas se apresentem de forma mais severa, acarretando prejuízos na vida social, profissional, pensamentos suicidas e alucinações, o indivíduo poderia ser diagnosticado, e consequentemente tratado com uso de antidepressivos.
Já o DSM-5 (manual utilizado atualmente), para o diagnóstico de luto patológico não há mais o seletivo de tempo. A orientação do DSM é basicamente que o luto sem complicações seja diferenciado de um episódio depressivo maior, pois essas possuem condutas e tratamentos diferentes. O DSM atual descreve o luto sem complicações:
Luto Sem Complicações: Esta categoria pode ser usada quando o foco da atenção clínica é uma ocorrência normal à morte de um ente querido. Como parte de sua ocorrência dessa perda, alguns indivíduos em sofrimento apresentam sintomas característicos de um episódio depressivo maior - por exemplo, sentimentos de tristeza e sintomas associados, como insônia, apetite limitado e perda de peso. Uma pessoa enlutada costuma considerar o humor depressivo como “normal”, embora possa procurar ajuda profissional para alívio dos sintomas associados, como insônia ou anorexia. A duração e a expressão do luto “normal” variam muito entre diferentes grupos culturais. Mais orientações para que se diferencie o luto de um episódio depressivo maior fazem parte dos critérios para episódio depressivo maior. DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5º Edição, American Psychiatric Association).
Na contemporaneidade, somos convidados a reagir rapidamente às experiências de perda. Vivemos em uma sociedade muito imediatista, em que o tempo cronológico não costuma respeitar o nosso tempo interno. Assim, nos vemos constantemente sufocados pela cultura da superação. Para psicanálise, para que possa existir superação, deve haver antes o processo de elaboração do luto, e este é muito único de cada um. A elaboração é um percurso longo e doloroso, único e individual de cada sujeito. Pode ser até violento estimar um tempo de forma generalizada, sem individualizar cada indivíduo e as especificidades de sua vida.
Acredita-se que ao experienciar o luto, admitir a tristeza, demonstrar fragilidade e vulnerabilidade, são os caminhos para que a elaboração e a superação eventualmente aconteçam. Acredita-se que a depressão diante da perda deve ser experienciada para que possa haver uma superação.
Freud utiliza o termo trabalho do luto como o processo do ego de elaborar que o objeto amado não existe mais no ambiente externo, apenas no interno. Para que a elaboração ocorra de maneira saudável, a tristeza e a depressão deverão sim existir. A superação do luto ocorre a partir do momento em que o indivíduo consegue investir sua energia em outros âmbitos de sua vida, quando o processo de depressão se torna menos intenso e consegue continuar a vida após o acontecimento.
Porém, superar não significa que nunca mais haverá dor. Não significa que em algum momento, lembrar-se do ente amado deixará de ser difícil. É como se, no início do processo, a dor fosse como o peso de um piano nas suas costas, dificultando ou até impedindo que você consiga se movimentar. Com o tempo, esse peso vai diminuindo, mesmo que lentamente, até que, em algum momento, esse peso passa a ser mais parecido com o de uma pedrinha guardada no seu bolso. Um peso leve, uma dor que existe, ainda está lá, mas que não te impede mais de andar. E aí conseguimos nos movimentar novamente. Mas mesmo assim, uma pedrinha fica ali no seu bolso. Você sempre vai sentir seu peso, sentir que ela está lá, mas seremos capazes de viver novamente. E quando tocarmos no bolso, lembraremos dela.
Quando ocorre uma superação, o processo de luto tem o poder de mudar completamente a vida do indivíduo. A vida era uma e se torna outra após a partida do ente querido. Um marco em nossa história e também em nossa mente e corpo.
Um estudo realizado em 2022, nomeado o Imensurável da Experiência do Luto Materno, relatou que mães enlutadas após a perda de seus filhos, passaram a pensar mais assiduamente sobre o porquê de suas existências e para que elas existiam, questionando o sentido de suas vidas. O jornalista Iñaki Gabilondo quando entrevistado, contou que a morte de sua mulher, que faleceu bastante jovem de câncer, havia sido muito dura, sim, mas também a coisa mais transcendente que lhe aconteceu.
Essas palavras me marcaram para sempre. Perdi meu pai muito cedo e muito inesperadamente e com certeza o luto foi a pior dor que já senti, mas também foi a mais transcendente que eu vivi.
A vida foi dividida entre antes e depois. Era uma antes e outra depois da sua partida. E depois do processo do luto, me transformei em uma pessoa completamente diferente. Eu não sei se posso dizer que me “transformou”. Eu nunca diria que esse processo já acabou. Se passaram 7 anos que ele se foi e eu ainda sinto uma mistura de dor, amor e saudades dele. Acho que esses sentimentos nunca deixarão de ser um tipo de trabalho que eu tenho que fazer. Esse trabalho normalmente acontece na minha terapia.
Mas, no final das contas, sou muito grata a todo esse processo. Hoje, sou capaz de valorizar momentos que muitas vezes passavam despercebidos na vida corrida. De alguma forma, sou mais capaz de perceber que os momentos que aparentam ser insignificantes ou rotineiros, são os que realmente importam no fim e são esses que fazem falta depois de perder quem amamos.
A dor, por mais corrosiva que seja, hoje em dia permito que ela venha… Permito que as lágrimas me escorram do rosto toda vez que eu precisar. Independente de onde eu estiver e com quem eu estiver. Se eu precisar chorar todas as vezes em que lembrar dele, eu vou chorar. E as pessoas têm que bancar isso, digo temos que normalizar porque afinal esses sentimentos e lágrimas são a saudade e o amor que ficaram dentro de mim. E eu quero ser livre para sentir tudo o que tenho pra sentir por ele. Esse amor é doloroso mesmo, mas é também o que me faz ver a vida mais bonita.
Se você tem alguém próximo que está passando pelo processo, não o(a) deixe sozinho(a). Dê amor, atenção e muito conforto a essa pessoa, e principalmente, aceite o sofrimento dela. Não tenha medo de falar sobre e não tenha medo de ajuda-lá a lembrar sobre o ente querido que se foi. É muito importante para quem está passando por esse processo que possa falar sobre tudo isso e que se sinta acolhido(a).
Se você é médico ou da área da saúde, atenção ao diagnosticar um paciente como depressão ou episódio depressivo - procure ativamente sobre uma perda recente ou processo de luto mal elaborado, pois na maioria dos casos esses pacientes devem ser encaminhados à psicoterapia antes de iniciar o tratamento medicamentoso.
Caso você esteja em processo de luto, procure ajuda. Procure terapia. A psicoterapia e a análise ajudam na elaboração do processo permitindo que ocorra de maneira muito mais saudável. Permita-se viver o luto. Permita-se sofrer. A saudade é o amor que fica. Não tenha medo de experimentá-la.
Por Giovana E. Ribeiro
Referências bibliográficas AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
Psicanálise de Boteco: o Luto e a Psicanálise - Professor Alexandre Patricio de Almeida.
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